Fonte: O Estado de S.Paulo, 26/07/2010 Autor: Ronaldo de Carvalho
O fracionamento de medicamentos passa a ser discutido pela sociedade no momento em que está sendo analisado pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, depois de ser aprovado pela Comissão de Seguridade Social. O Projeto de Lei n.º 7.029, de autoria do Executivo, torna compulsória a produção e comercialização de medicamentos fracionados no País. De acordo com a argumentação exposta publicamente por alguns legisladores e autoridades, o fracionamento traria basicamente três ganhos para a sociedade. Um deles seria para o bolso do consumidor. As embalagens de medicamentos seriam possivelmente infladas pelos produtores para induzir o consumidor a comprar mais do que precisaria. Mas as opções são definidas, na verdade, com bases técnicas apoiadas na necessidade média de tratamento e aprovadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Ou seja: as adaptações deveriam ser discutidas com base em evidências médicas. Além disso, a vantagem econômica não se aplica ao caso dos tratamentos crônicos, pois o consumo é contínuo. Assim, se o paciente optar por comprá-los a porções menores, acabará por pagar um preço mais alto, porque as embalagens menores implicam custos unitários maiores, exatamente pela perda de escala produtiva. Sem contar os investimentos na adaptação de todos os processos de embalagem, manuseio, distribuição pela indústria e dos processos de estoque e manuseio nas farmácias, que serão repassados ao consumidor, diluindo o "ganho social" da medida. Outro ganho seria a redução do risco de automedicação. A consagrada "farmacinha caseira" disponibiliza medicamentos que dispensam receitas. É difícil imaginar, no entanto, que os consumidores vão esperar a dor de cabeça chegar para irem à farmácia. Além disso, o fracionamento atinge somente os comprimidos e drágeas, que correspondem a apenas um terço do volume de medicamentos comercializados. E o fracionamento ainda é um estimulo para o paciente interromper o tratamento premido pela questão financeira, causando mais um problema de saúde pública. Se o objetivo é combater a automedicação, não há outra saída se não ser investir na educação do paciente. Acidentes. O terceiro ganho seria a redução do risco de acidentes domésticos. Mas parece um contrassenso que, em nome da segurança, se elimine a "farmacinha" e se preservem os fogões nas cozinhas e as facas nas gavetas. Dados de 2007 do Ministério da Saúde mostram que, considerando fatores externos, das 5.324 mortes de crianças no Brasil, quase 50% foram ocasionadas por acidentes de trânsito (2.134), seguidos por afogamentos (1.382), sufocações (701), queimaduras (337), quedas (254), intoxicações (105), acidentes com armas de fogo (52) e outros (359). A responsabilidade de evitar acidentes domésticos é dos pais e responsáveis e isso deve ser estimulado por meio de programas de conscientização ou ainda da doação das sobras de medicamentos, como têm feito algumas louváveis organizações não-governamentais. Dúvidas. Alguns pontos não foram abordados nessa discussão. Se com a produção e distribuição das caixas fechadas os números relativos à falsificação já são alarmantes, o que pode acontecer se for obrigatória a distribuição de caixas e unidades avulsas? Ou como ficará o controle em blitz nas farmácias, se os lacres das caixas já vão poder estar abertos? Sem contar o roubo de cargas e suas implicações econômica e sanitária. Essa realidade tem mobilizando vários países a criar mecanismos e instrumentos mais eficazes a fim de coibir esta prática, como a tecnologia de rastreabilidade - defendida pela Abrafarma, entidade que representa as redes de farmácias e drogarias do País. Há pouco mais de um ano, foi aprovada a Lei n.º 11.903, que estabelece o Sistema Nacional de Controle de Medicamentos. Pelo padrão brasileiro, as embalagens dos medicamentos produzidos e comercializados no País receberão obrigatoriamente um selo impresso, com códigos bidimensionais, que garantirá a procedência. A tecnologia permitirá ao consumidor consultar no ato da compra a legitimidade do produto. A implantação dos fracionados põe em risco esse avanço, já que a embalagem deslacrada quebra o ciclo de segurança pretendido. De acordo com a Abrafarma, é praticamente impossível rastrear as pequenas unidades depois de fracionadas. O fracionamento, assim, pode parecer eficaz à primeira vista, mas nós defendemos uma análise mais detida entre os prós e contras da medida. Pelos impactos já descritos, ela de fato parece trazer ganhos reais na dimensão hospitalar, mas não na prescrição ambulatorial. Acreditamos que uma posição efetivamente responsável na preservação e melhoria da saúde no Brasil passa mais pelo próprio sistema público do que pelo fracionamento de medicamentos. E também por medidas que, embora mais trabalhosas e de efeito mais demorado, representem o investimento na educação de pacientes para o consumo responsável.