terça-feira, 14 de setembro de 2010
vacina contra a esquistossomose – a primeira 100% brasileira
Após três décadas de estudos, Miriam Tendler consegue um acordo para produzir sua vacina contra a esquistossomose – a primeira 100% brasileira
Conseguir mais de uma hora na agenda dela é difícil. O fato de não tirar férias há cerca de dez anos dá uma ideia de quanto ela esteve ocupada nas últimas décadas. Mas o esforço valeu a pena. A doutora Miriam Tendler, de 61 anos, pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), descobriu a vacina contra uma doença que afeta 74 países: a esquistossomose, conhecida popularmente como barriga-d’água. No ranking de doenças parasitárias que afetam mais pessoas em mais países, a doença só fica atrás da malária. Estima-se que haja 200 milhões de pessoas infectadas e outros 600 milhões sob o risco de contaminação. Por ano, são 200 mil mortes. A fasciolose hepática, a variação da doença que contamina rebanhos, leva a prejuízos de US$ 3 bilhões anuais para a indústria de alimentos, pela infecção de mais de 300 milhões de cabeças de gado.
A história da primeira vacina 100% brasileira – da descoberta à produção – começou há mais de 30 anos e é um exemplo de como a biologia molecular pode ajudar a saúde pública. As vacinas funcionam assim: um antígeno em doses inofensivas é posto em contato com o organismo humano, que produz anticorpos para se defender daquela doença e cria uma proteção para contágios futuros. Na maioria das vezes o antígeno é desconhecido. No caso da vacina contra a gripe, o vírus é injetado no organismo humano, mas não se sabe exatamente o que naquela vacina faz o corpo humano reagir. No caso dos vírus, que podem ser reproduzidos em larga escala em laboratório, isso inviabiliza a produção industrial das vacinas. Mas a esquistossomose é causada por vermes do gênero Schistosoma. Seria inviável cultivar esses vermes em larga escala para a produção industrial da vacina.
Por isso, o trabalho da equipe da doutora Miriam era descobrir e sintetizar o agente dentro do verme que provoca a reação de defesa no organismo. O resultado das 12 horas de trabalho diário veio em 1990, quando ela conseguiu clonar a proteína Sm14, um bom antígeno para a vacina.
Era um resultado fantástico. Mesmo assim, Miriam se diz surpresa com a visibilidade que ganhou. Mas os 15 anos de trabalho até aquela vitória eram só o começo. Rigorosa com seus métodos de pesquisa, Miriam iniciou ali os esforços para estabilizar a proteína, registrar patentes e testá-la em animais. Sem isso, a descoberta não cumpriria seu potencial de servir à sociedade.
Nos anos seguintes, Miriam se dedicou a melhorar o processo de produção do antígeno, para diminuir suas etapas e torná-la viável economicamente. Vinte anos depois, os testes em animais chegaram ao fim, e a vacina – em sua versão para o gado – finalmente vai começar a ser produzida pelo laboratório Ourofino, que comprou a empresa de fomento que detinha as patentes. A versão para humanos ainda vai demorar. Por contrato, a Ourofino se comprometeu a produzi-la assim que ela passar pelos humanos, que serão iniciados neste ano. A previsão é que ela esteja disponível em no máximo cinco anos.
Por que o gado veio na frente? Um dos problemas que a doutora Miriam teve de enfrentar é que a vacina contra esquistossomose não tem apelo comercial. Trata-se de um remédio para gente pobre. O maior mercado é a África, e isso já diz bastante sobre sua viabilidade econômica. Por sorte, havia a doença do gado. Como a molécula usada na vacina animal é a mesma, a humana avançou na carona. Havia concorrentes. Os franceses chegaram a desenvolver uma vacina contra a doença, mas ela só combate uma das sete espécies de verme que causam a esquistossomose. A Sm14 foi reconhecida pela OMS como o único candidato com capacidade para chegar ao mercado rapidamente.
A situação começou a mudar há alguns anos. “Trabalhar com doenças para países pobres virou um bom negócio em todo o mundo”, diz Miriam. “Ficou mais fácil captar recursos.” A Fundação Bill e Melinda Gates, do fundador da Microsoft, declarou no começo deste ano que esta seria a década das vacinas. A fundação doou US$ 10 bilhões para pesquisas na área. O laboratório de Miriam conseguiu cerca de R$ 18 milhões fora da Fiocruz, com agências de fomento à pesquisa e a Organização Mundial de Saúde.
“A produção científica brasileira é grande, mas dificilmente consegue chegar ao mercado”, afirma Miriam. Qual é o segredo dela, então? “Foco”, diz. Seus colegas se referem a ela como uma pessoa determinada. Miriam é filha de um judeu brasileiro e uma imigrante judia alemã, que veio para o Brasil fugindo do nazismo. “Acho que a cultura judaica de valorizar o estudo e o esforço me ajudou muito. Lá em casa, nunca faltavam livros.”
Durante a pesquisa, ela raramente tirou férias. Quando tirava, era só em “meio período”. Sempre dava um jeito de passar no laboratório de manhã para acompanhar o trabalho. Mãe de três filhos, dois gêmeos, sempre teve de equilibrar os papéis de mulher e cientista. Ela diz que o marido ajudava, mas às vezes precisou levar as crianças para o trabalho (numa época em que ainda não era proibido ter crianças dentro do laboratório). Atualmente está divorciada, e os filhos estão crescidos. De vez em quando, leva os dois netos – mas eles ficam no escritório, longe das pesquisas. Para fazer as unhas ou ir ao cabeleireiro, só em aeroportos, enquanto espera um voo internacional.
Ante a falta de estrutura no Brasil, ela certa vez carregou uma mala com seus materiais de trabalho, suas amostras, para o Marine Biological Laboratories, nos Estados Unidos. “Um trabalho assim é complicado, tem horas que parece que você avança muito e horas em que você empaca”, afirma. Para sair dos impasses, ela contou com uma rede de 13 colaboradores de países como Egito, Suíça e Suécia. Alguns são responsáveis por partes do processo, outros prestaram consultoria. “Tenho a oportunidade de conhecer e conviver com pessoas de todo o mundo”, diz.
O projeto sofreu com a cultura acadêmica brasileira, que avalia o pesquisador pelo número de artigos que publica e estimula o uso da pesquisa no ensino de alunos de doutorado e mestrado. A equipe enfrentou as críticas porque acreditava que o conhecimento produzido naquele laboratório deveria ser protegido. Para Miriam, a pesquisa se tornou uma missão. Tanto que ela nem queria fazer a foto que ilustra esta reportagem. Temia que pudesse dar azar.
Jornalista: Maurício Meireles - Época